Escrever camada a camada
O sabor era complexo. Conseguia ser quente e fresco, perfumado e leve, ao mesmo tempo. Aquele caril de frango era uma verdadeira delícia. Melhor do que o meu.
Eu queria a receita. E a minha amiga deu-ma. Assim que surgiu a oportunidade, experimentei-a. Só que o resultado não foi o desejado. O prato estava desequilibrado.
Não me dei por vencida. Voltei a testar. Mas, desta fez, prestei atenção aos detalhes. Reli a lista de ingredientes e os passos da preparação, com olhos de ver. Não me limitei a seguir as instruções. Dei por mim a pensar na forma como a minha amiga cozinhava.
Desconstrui o prato, item a item. Cada camada de sabor foi ponderada. Percebi a importância de cada indicação. A ordem de entrada das especiarias. Os tempos entre cada adição. O toque de coco ralado no molho. A mão cheia de coentros frescos, no final. Tudo tinha a sua razão de ser.
Um bom livro. Um artigo aliciante. Uma história cativante. Todos despertam o interesse do leitor. Mas ele limita-se a consumir por gosto, por preferência, por interesse. Ao escritor, ao criador, compete fazer mais. Ele tem de (ou deve) perceber o como e o porquê. Desmontar a construção, frase a frase, e perceber a estrutura elaborada.
Na cozinha e na escrita, criar implica observar com cuidado cada pormenor. Porque é a nossa curiosidade que nos ajuda a encontrar o caminho.